Pandemia acentua necropolítica bolsonarista contra pobres

 


   Por Gilliam Nauman Iqbal*


 O século XXI está profundamente marcado pela pandemia do coronavírus. Mas, para além da intensa crise sanitária que vivemos, há um aspecto, não menos sútil do que as mais de 280 mil mortes notificadas no Brasil, onde cabe a análise dos sujeitos que ocupam essas estatísticas. A pandemia tornou-se um marcador de desigualdades e processos sociais, capaz de acentuar mazelas e migrar os sujeitos nas estratificações sociais. A análise dos espaços mais afetados pelos surtos da COVID, remetem às zonas nas quais os processos históricos colonialistas podem ser observados.

 

    Quem de fato está mais desamparado socialmente diante do grave período que vivemos? O que os processos históricos apontam, sobre os indivíduos mais afetados pela crise do COVID? A negativa do governo em atuar com políticas emergenciais e planos de ação que minimizem as devastadoras consequências, está relacionada a uma necropolítica (um conceito desenvolvido pelo filósofo Achile Mbembe, em que questiona os limites do Estado em escolher quem deve viver e quem deve morrer) pensada, planejada e que apenas armou mais pesadamente as engrenagens que fazem girar os mecanismos de exclusão, conforme uma lógica racista, elitista e de modo a perseguir grupos desfavorecidos. 

 

    Quais os critérios que tornam vidas humanas, visíveis, a partir do panorama da COVID? Partindo desses questionamentos, pode-se pensar no vírus, como um elemento que nem de longe, é um planificador social, considerando que ele é letal a qualquer indivíduo, independente de classe social, cor, gênero e etnia, mas como um marcador de desigualdades, exclusão social, total ausência de gestão política, bem como de políticas públicas que contemplem as comunidades. 

 

    Se por lado fica evidente que a COVID se tornou um marcador social, por outro, ele se tornou a manta da invisibilidade de um outro grupo de indivíduos, não passíveis de luto, dos sem registros como cidadão, dos sem teto, dos que habitam qualquer ponte, calçada ou caixa de papelão, daqueles que não constam nem no rodapé de registros. E quando pensamos nesse quadro, é impossível não cruzar o vírus contemporâneo, com os processos históricos de exclusão que se arrastam pela nossa linha do tempo. Os mais de 280 mil mortos que são contabilizados nas chamadas dos telejornais, são números infiéis, sabemos. Mas mesmo quando falamos em subnotificação, consideramos essas vidas? A pandemia é um divisor claro daquilo que se considera uma vida digna e daqueles a quem não é conferido humanidade.

 

    A história do Brasil sempre foi permeada de sujeitos invisíveis pobres em situação de mendicância, deficientes, índios, escravos, doentes mentais, apenados. A pandemia também gira nessa mesma engrenagem de exclusão e invisibilidade. Em que lugar da história contemporânea, caberá essas vidas sem registro, ceifadas pela COVID?

 

    Ao partirmos para analisar os dados da pandemia, com o sentimento de dívida (porque esse é o sentimento que me ocorre) e na perspectiva de dar forma às vidas invisíveis, significa encontrar elementos que ajudem a remontar o locus dessas vidas no espaço histórico, considerando raça, gênero, religião, classe, os direitos como cidadão, o tipo de moradia, o acesso às políticas públicas e aos serviços básicos, e enquadrar nas estatísticas, os milhões de infectados pelo novo coronavírus.

 

    Porém, a real situação do Brasil, não permite, de forma simples, tatear esses sujeitos. A absurda subnotificação da doença, viabilizada pela inconsistência das testagens ou mesmo a inexistência do teste, é refletida numa curva em constante ascendência, e pontua o Brasil como epicentro mundial da doença. As pesquisas apontam que o Brasil possui a taxa de transmissão mais alta do mundo. Analisando os irreais números, na marca de mais de 280 mil mortos pelo COVID, é impossível não ler tamanha desgraça, como um projeto de genocídio das vítimas dos processos históricos excludentes e retratados nas vidas tão incômodas para os sucessivos governos que tivemos, e sobretudo, pelo modelo de sistema direitista assassino que ocupa o governo central do país.

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Gilliam Nauman Iqbal* é formada em História pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), pós-graduada em Sociologia das Interpretações do Maranhão, estudante de Fotojornalismo na faculdade Cruzeiro do Sul, Presidente do Instituto de Estudos e Solidariedade para Palestina, Razan al Najjar - MA, ativista muçulmana, feminista, membro da Juventude Árabe Palestina Sanaúde, brasileira.

Comentários

  1. Excelente o seu texto! Infelizmente as classes menos favorecidas são as mais suscetíveis, mais afetadas por vários vírus, não só pelo vírus pandêmico mas pelos vírus da discriminação, do ódio e da desigualdade😓

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  2. Lucidez e sabedoria, texto real e íntegro, parabéns!!!!!!!!

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